“Muji ya Kilunji”, em Kimbundu que significa em português “gerações de sabedoria”, é o pseudónimo literário de Maria Santana, radicada no Reino Unido há 30 anos. A nossa entrevistada transformou as saudades e a memória do bairro que a viu nascer, a Precol, um dos mais emblemáticos da cidade capital, na matéria-prima do seu livro, lançado em Luanda no terceiro dia deste mês de Abril.
Quem é Maria Santana?
Sou filha de Deus, mãe de três patriarcas e três netinhas, angolana de gema. A parte paterna vem de Catete, Quinanbiri, e a parte materna da família Bastos, especificamente de Nambuangongo. Apesar de viver há mais de 30 anos fora de Angola, continuo a tê-la no coração. Não me esqueci do meu país, a família e as origens. Nasci em Luanda, sou filha do Rangel, sou precolense. Posso dizer que guardo as memórias do meu país, do meu município e do meu bairro. Eu vivia na Precol, na Rua Rubra.
O que a inspirou a escrever "A Precol do meu tempo”?
A inspiração parte da saudade, porque resido fora de Angola desde 1992. Distante da minha terra natal, caiu-me aquela ficha da saudade. Sempre tive a tendência de seguir as pegadas do meu pai, que era sindicalista e já foi também deputado. Ele estava sempre rodeado de papeis. Um homem muito inteligente e sábio. Sou a filha que mais esteve ao lado dele. Ora em reuniões, ora a viajar, educava-nos não só com os dizeres básicos da vida, mas, naquela fase, acho que indirectamente preparava-nos para que fôssemos não só alguém na sociedade, mas a seguir aquele caminho da boa ética. E sempre nos actualizou da situação do país, da nossa cultura... Então, a vontade de escrever já vem do berço.
O que retrata este livro?
Nele "A Precol do meu tempo” retrata a fase em que o bairro foi construído pelos portugueses, um projecto para beneficiá-los. Foi atribuído o nome Precol em homenagem à construtora que a projectou, nos finais dos anos 50. Já na fase de transição para a independência, nós, os angolanos, tivemos aquele privilégio de também gozar de uma boa vida. Eu especificamente nasci no Rangel, na área da Dona Amália. Ainda não morávamos na Precol. O meu avô André Bastos já tinha uma casa nos arredores, por detrás da Rua Rubra, a seguir à Rua Azul. Escrever sobre este lindo bairro deu-me aquela saudade e também os mecanismos de aprendizagem e ensino do meu pai, que gostava de escrever e passou para mim.
E como era a Precol do seu tempo?
Na Precol, as casas eram lindas e mais decentes, vivendas vastas e quintais com jardins e plantas lindas. À volta do bairro, existiam muitas árvores, especialmente a gajajeira, uma árvore de uma fruta rara. Na capa do livro faço referência à gajajeira e a duas cabaças. A cabaça rachada representa a fase em que nós vivíamos na periferia da Precol, em bairros como, por exemplo, o Rangel. Naquela fase, vivíamos em condições precárias, não havia água potável nem energia eléctrica. Os chamados indígenas tinham restrições. Os nosso pais passaram por muitas situações, pois não tinham acesso a um bom hospital. Não tínhamos acesso a uma boa vida. A segunda cabaça retrata a fase em que nós passamos a morar na Precol. Havia água corrente e potável e as condições belíssimas que agora apresenta. Assim posso dizer que depois da transição ou mudança do Rangel para a Precol do meu tempo, passamos a viver numa área de luxo. Parecia que era em Lisboa. Risos.
Qual a comparação que faz da Precol do seu tempo com a actual?
Na "Precol do meu tempo”, nós não apenas tínhamos as casas sofisticadas, mas também a educação cívica e moral que os nossos país faziam questão que seguíssemos. Agora, estamos numa fase em que precisamos de fazer o resgate de valores, porque os valores por que primávamos naquela altura, hoje em dia estão a desaparecer.
Ao escrever sobre a Precol, eu venho juntar as lenhas. Em que sentido?
Naquela fase, quando não tínhamos as condições sociais criadas, cozinhávamos os alimentos no carvão ou nas lenhas. Nós só conseguimos cozinhar quando as lenhas estão juntas. Porque depois de um certo tempo, as lenhas espalham-se, o fogo apaga-se e já ninguém consegue cozinhar. Daí a necessidade de juntar as lenhas. Actualmente, devemos juntar as lenhas, unirmo-nos, para não só mantermos a Precol do meu tempo, mas também unir Angola nas nossas tradições, resgatar a educação cívica e moral. Precisa-se fazer muito para chegar à Precol do meu tempo. Não sei se será possível, mas acredito que sim, nada é impossível.
Tem vindo regularmente a Angola e a constatar essa realidade?
Sim. Já vim ao país várias vezes e consegui notar as diferenças em relação àquele tempo. Já não é a mesma coisa. As ruas já não estão asfaltadas, os bairros já não estão lindos com os seus jardins, assim como o que cada um de nós tinha nas nossas casas, como retrato no meu livro. Aos finais de semana, nós os jovens fazíamos campanhas de limpeza para limpar o bairro. Havia competição para representar o melhor jardim nas ruas Rubra, Verde, Azul, Amarela, Arco-Íris, entre outras. Agora já não temos o asfalto. A primeira vez que estive cá foi em 2015 e já estava em degradação. Em algumas casas, já não corre água nas torneiras e as árvores de frutas não existem. Havia figueiras, gajajeiras, mangueiras, acácias e muitas outras árvores lindas. Algumas famílias talvez tenham preservado algumas dessas árvores.
Como foi a sua infância?
Como quinta filha de nove irmãos, a minha infância foi muito bonita. Na transição do Rangel para a Precol já tínhamos uma vida estável, porque o meu pai era sindicalista e podia comprar brinquedos. Ele já viajava muito e a mãe sempre cumpria o seu papel e sabíamos que era à mesa que eram passados os valores. "Não falar com a comida na boca, ouvir enquanto o outro está a falar”. Assim como outros reparos do comportamento e as tarefas da escola. O meu pai testava os nossos conhecimentos e a mãe era explicadora. Lembro-me que era obrigada a fazer vinte cópias para melhorar a letra. Era por aquele aprendizado que nós tínhamos de primar, porque sabíamos que um dia, ou agora que somos pais e avós, seria considerado básico e necessário.
E o que mais a marcou?
A união, o respeito entre vizinhos, os mais velhos e o seu legado.
O que não gostou de ver, actualmente, no seu antigo bairro?
Entristeceu-me saber que o asfalto desapareceu e que agora é considerado um bairro com muito vandalismo. Não sei como explicar, mas entristece-me saber que hoje os jovens, alguns deles, já não valorizam o respeito ao próximo. Eu aqui faço referência ao vizinho do lado, ao Rochete Ferreira, que era o treinador dos Independentes. Quando o meu pai ou a mãe não estivessem em casa, ele era um pai, porque também me educava. A tia Mariana também fazia este papel. Eu não podia aprontar na rua, nem mesmo dentro de casa com um irmão. Porque vinham nos dizer que o que estávamos a fazer estava errado. Mas, hoje em dia, pelo que vemos, já não podes ralhar um jovem. O vizinho ou a tia ao lado não significa nada. Não são todos. Mas também notei que muito do pessoal do meu tempo já não vive na Precol. E apesar de já não vivermos lá, devemos manter os valores éticos, não falo apenas da Precol, mas de outros bairros como o Rangel. Tenho notado que a Precol também tem muito talento. Neste primeiro volume, faço apenas uma introdução. No segundo volume vou falar de outros protagonistas da Precol, além de mim com os meus pais, tenho de falar sobre o Rouchete Ferreira, a avó Mariana, o Matreira, o Pepé, o Salife, a Bia, o Kaliengue, a Kalina... que são muito mais velhos de mim. Mas, actualmente, não está tudo perdido, pois na Precol há jovens formados, chefes de família e empreendedores. Não posso dizer que está totalmente numa energia negativa.
Quando fala dos talentos da Precol, a que se refere?
O senhor Rochete Ferreira era um treinador de referência na formação de grandes jogadores de futebol. No carnaval, o Man Brás tinha o talento de tocar vários instrumentos, o que era algo único. Tocava de rua em rua, só que mais tarde ele perdeu as suas faculdades mentais. O Passos foi um grande jogador de basquetebol, a professora Kalina era uma professora de ballet muito talentosa. Eu fiz parte do grupo "As Precolenses”, com as minhas irmãs mais velhas, entre elas a Inês Santana, e íamos actuar na TPA. Temos ainda o escritor Taytas Lemos, com quem tive oportunidade de trocar experiências. A cantora Noite e Dia é hoje uma referência. A Precol foi sempre um bairro de talentos. Continuo a pesquisar informações sobre a Precol actualmente. E aproveito a oportunidade para apelar a todos quantos possam enriquecer as minhas pesquisas, que podem fazê-lo nas minhas páginas das redes sociais.
Pode descrever-nos como era o ambiente na Precol "do seu tempo”?
Após a Independência Nacional, tínhamos liberdade de expressão, fazíamos competições, aprendíamos uns com os outros, independentemente dos bairros. Aprendíamos com os mais velhos. Na Igreja Nossa Senhora de Fátima aprendíamos o catecismo. Havia programas de teatro, de bordados... Tínhamos o posto médico do senhor Zé Maria e o padre Luís... O desporto era acompanhado pelo senhor Rochete Ferreira, o Tetas, e havia a discoteca do Matreiras. Havia uma mistura de recreação de convivência, e também houve uma altura em que as mais velhas, daquela malta que saiu das outras periferias, começaram a casar-se. Havia aquele convívio amigável. Não havia violência entre a vizinhança. Mais tarde, começou a mudar, uns venderam as casas e saíram da Precol.
Sendo o seu pai sindicalista, que influência tinha no bairro?
Para além do meu pai, que é o senhor Paulo Manuel Santana, com o nome de guerra "Kifukumba”, e principalmente o tio Félix... Naquela fase, ele estava sempre com muitos livros, e quando se encontrasse com os jovens dizia que tinham de ter noção da vida e do rumo que o país estava a seguir. E explicava-nos sempre a diferença entre Angola ser uma colónia e sermos nós a dirigir o país. Assim como a diferença entre o socialismo e o capitalismo. Depois vinha o meu pai com a cartela do sindicalismo... Mesmo antes da independência, as empresas foram mobilizadas por sindicalistas como o meu pai, na clandestinidade, para que não só o sistema português se desfizesse das indústrias, mas velassem pelos direitos dos trabalhadores. Os nossos pais preocupavam-se sempre em passar-nos alguns ensinamentos.
O livro traz algumas fotos que nos remetem a um passado de uma época sem as novas tecnologias...
Eu falo dos aspectos sócio-culturais daquele tempo. Faço referência à geração que assistia à televisão na casa do vizinho, pois nem todos tinham o aparelho. À época dos quadros humanos na Cidadela. As mulheres desfrisavam o cabelo com instrumentos rudimentares. Na Precol havia um depósito de pão que causava muita polêmica, porque os moradores reclamavam do barulho das pessoas que iam comprar pão. Falo dos pirulitos, um doce de que as crianças gostavam muito. O tipo de telefone que usávamos. Os tanques que as nossas mães usavam para lavar a roupa, ao contrário de hoje que já temos máquinas. O tipo de jogos que brincávamos. Naquele tempo, nem tudo era fácil, isto para a reflexão dos jovens desta época, que apesar de uma certa comodidade com a evolução das tecnologias, falam em sofrimento.
Que lição os jovens podem tirar do seu livro?
Podem tirar a lição de que todas as fases não são fáceis. São fases transitórias, mas são épocas que nós devemos acompanhar com a evolução do tempo. Agora, se todos nós ficarmos desmoralizados porque enfrentamos uma vida difícil... vemos jovens no suicídio, na bebedeira e no crime. Não tem como nós dizermos que estas são as últimas soluções, mas devemos olhar para o que está a nossa volta e ao nosso alcance e fazermos uso destas situações. Quem tiver oportunidade de jogar bola na rua, amanhã poderá ser um jogador do Inter ou do Petro de Luanda, se ganhar prática e evoluir o seu talento. Se quiser ser melhor escritora, não posso ficar a dormir, tenho de tirar um tempo da minha vida para ler e pesquisar. Assim como a pessoa que quer ser dona de um restaurante, de um empreendimento, tem de se dedicar. Muitas vezes as pessoas pensam que se aprende tudo na escola. Aprender a cozinhar bem, a ser uma dona de casa, a limpar, a ordenar, você consegue também ser uma boa empresária ou um bom empreendedor. São os princípios básicos de disciplina, cumprir horários, ser honesto nos negócios, pagar os valores exactos, os impostos. Comunicação, comprometimento e interação, tudo isso faz parte da gestão. Como dizem os ingleses, cada um dos filhos de uma família representa uma nação, porque daquela geração, daqui a uns 20 anos, cada um vai constituir um núcleo familiar. E se este tiver uma educação cívica e moral, fará uma sociedade estável e não desequilibrada. São esses princípios morais que nós ainda tivemos, naquele tempo. Não porque pertencíamos a uma colónia portuguesa. A nossa cultura africana tem uma educação própria.
Mas com a globalização e as novas tecnologias há cada vez mais a adopção de outras culturas...
Porque estamos mais com programas europeus ou asiáticos do que com os nossos. Por isso, temos de resgatar os valores que já vêm dos nossos antepassados, Njinga Mbande, Ngola Mbande e tantos outros, até da fase de luta de libertação de Angola.
E as saudades da Precol do seu tempo a fariam querer voltar no tempo?
Não diria que voltaria à Precol do meu tempo, mas do tempo dos nossos pais que souberam resgatar os valores dos antepassados e passaram às nossas gerações. Eu, particularmente, passei esse legado aos meus filhos. Os angolanos daquele tempo, principalmente depois da transição de 1975... não sei quantas famílias ainda mantêm esses princípios, que um filho deve cumprimentar, deve sentar-se à mesa, tem hora de ver televisão, fazer os trabalhos de casa, participar no meio ambiente de casa. Naquele tempo, para além dos nossos pais primarem pelo bom ambiente de casa, nós os jovens da Precol velávamos pelo meio ambiente do bairro e conseguíamos manter aquele nível. Depois vieram outras gerações que, se calhar, não conseguiram manter o nível por falta de recursos financeiros. Pois há reestruturação, há reformas. Uma estrada precisa de manutenção, assim como um carro ou uma casa. Assim como um bairro, um município e o país precisam de manutenção. Hoje pintamos, amanhã podemos tapar um buraco. É este resgate de valores que devemos fazer. Por isso, esta obra vem para "juntarmos as lenhas”. E uso esta terminologia, de minha autoria, para nos unirmos e continuarmos a manter, não só a Precol, mas todos os nossos distritos de Angola como Nação, para que os turistas que amanhã possam ouvir falar de Luanda, Cuanza-Norte, Cuanza-Sul..., e os seus bairros, tenham referências.
Quais são as referências da Precol?
Eu descrevo a Precol como uma cidade no meio do bairro. Tem a referência do bairro das cores, pois as ruas têm o nome de cores, das personagens que lá viveram, temos o largo Francisco Roxete, a Igreja Nossa Senhora das Graças. Os centros recreativos estão na periferia do Rangel.
Como caracteriza o livro "A Precol do meu tempo”?
"A Precol do meu tempo” é um projecto sócio-cultural, é a minha segunda obra publicada no Reino Unido, é o complemento da primeira com o título "A filha do sindicalista e a neta do mais velho Xicota”. Destaco de quem sou filha, faço uma introdução do meu pai, uma pessoa que muito admiro e passou-me um grande legado, não fossem os catetenses conhecidos como muito rigorosos ⁅Risos⁆. Faço uma introdução ao aspecto desportivo e cultural do bairro. "A Precol do meu tempo” é a primeira parte. Estou a trabalhar na segunda parte, que é uma autobiografia, onde vou falar mais de mim como Santana, sobre a minha formação pessoal, a família e a minha transição de Angola para Londres.
Como antiga moradora da Precol tem algum projecto ou contributo para o bairro?
Tenho alguns projectos guardados a sete chaves. Seria mau divulgar algo que não está ainda elaborado. Mas como também sou filantropa, na fase do combate a Covid-19 arrecadei alguns fundos para, em conjunto com uma associação existente na Precol, reunir condições para a obtenção de máscaras, produtos de higiene, entre outros. Se houver oportunidade de trabalhar com entidades, teria como desenvolver grandes projectos no bairro. Gostaria de fazer programas, principalmente com os jovens, como mãe sei que se os filhos não tiverem um acompanhamento adequado, ficamos nesse jogo de empurra na busca do culpado. Na Inglaterra, faço parte da associação UDOA-UK (União das Organizações dos Angolanos no Reino Unido), da qual sou representante executiva e trabalho com as comunidades. Faço a diferença no ramo social, em que me formei, e pelos conhecimentos que adquiri. A Inglaterra tem muitos quadros angolanos e se forem bem encaminhados, podem fazer a diferença que os estrangeiros fazem em Angola.
Que acções desenvolve a União das Organizações dos Angolanos no Reino Unido?
A UDOA-UK é um grupo de associados composto por empresários angolanos, associações que têm projectos não só na Inglaterra mas também em Angola. Trabalhamos com a igreja e a juventude e temos uma parceria com a Embaixada de Angola e o Consulado. Prestamos auxílio no acesso à informação sobre as condições que devem ser criadas para resolve