Gouveia Barros, de 18 anos, é um dos sobreviventes do ataque de um grupo que, no bairro do Chimbicato, Distrito Urbano da Camama, tem degolado jovens e adolescentes, um assunto que o Serviço de Investigação Criminal (SIC), em entrevista ao Jornal de Angola, garante esclarecer em breve.
O jovem tem marcas da agressão, uma cicatriz na região do pescoço, com cerca de 15 centímetros, resultante de um corte com faca que sofreu, há um mês, durante um ataque por um indivíduo suspeito de pertencer a uma rede de pessoas que têm assassinado jovens e adolescentes no Chimbicato.
A agressão a Gouveia ocorreu a 13 de Abril quando, por volta das 22 horas, se encontrava na rua, a escassos metros de casa, a teclar o telefone. Foi surpreendido por um indivíduo que lhe apontou com uma faca de cozinha ao abdómen.
Ainda visivelmente abalado com o sucedido, o jovem refere que o agressor chegou a identificar-se como agente do SIC. "Ele usava uma máscara cirúrgica de cor azul, roupas pretas e um ténis branco”, explicou, para avançar que o indivíduo era de altura média.
Na primeira abordagem, o indivíduo perguntou à vítima se esta fazia uso de liamba e se conhecia casas onde vendiam o estupefaciente, ao que este respondeu negativamente.
O jovem, ainda com reflexos traumáticos da situação que viveu, disse que se manteve calmo, apesar de ter uma faca apontada à barriga. Momentos depois, Gouveia foi levado para uma casa abandonada, localizada a 100 metros da residência dos pais.
"Perguntei se ele era, realmente, homem do SIC, porque andava com uma faca de cozinha. Nessa altura, ele mandou-me calar e obedecer às ordens dele”, contou Gouveia Barros.
No interior da casa abandonada, com apenas um quarto, erguida num espaço aberto, com mais ou menos 100 metros quadrados, o agressor pediu à vítima que se abaixasse e pousasse o telefone ao chão.
Naquele quarto, sem chapas nem portas, o agressor, ainda, deixou claro que não queria roubar os bens da vítima, mas que a missão era outra. Foi a partir desse momento que começaram as agressões físicas.
"Espetou-me a faca na boca e, ao tentar resistir, acabei por cortar a palma da mão”, realçou, acrescentando que "quando eu estive de joelhos e com as mãos ao chão, ele, sem hesitar, fez-me o corte no pescoço”, contou.
Momentos depois, explicou, o atacante procurou fazer um segundo corte no mesmo sítio, mas, graças ao barulho de um grupo de pessoas, o atacante desapareceu misteriosamente.
Quando foi encontrado, horas depois, em estado crítico, a família levou-o ao Hospital Geral de Luanda, onde permaneceu durante duas semanas, contou Justo Barros, irmão mais velho de Gouveia.
Gouveia considerou aqueles momentos como os mais tenebrosos da sua vida. E o medo toma conta de si, por não poder reconhecer o agressor. A única coisa que sabe é que ele era um jovem que falava muito bem em português, mas nunca o tinha visto no bairro.
Actualmente, Gouveia, considerada a primeira vítima desta onda de ataques e cortes no pescoço, está no seio familiar e a recuperar satisfatoriamente. Mas o medo continua a preencher os seus dias. Não consegue andar sozinho!
Vítima luta pela vida
Gouveia não é um caso isolado. Depois dele, mais quatro casos foram registados no bairro e no primeiro no período da noite, sendo que dois desses terminaram em mortes.
O mais recente ocorreu no dia 16 deste mês, em que a vítima é Frederico Filipe, um rapaz de 11 anos, que se encontra hospitalizado nos cuidados intensivos de uma clínica de Luanda.
O menor foi atacado por volta das 19 horas, quando saía da Academia de Artes Marciais, onde frequenta as aulas de Jiu-Jitsu. Quando o agressor o abordou, levou-o, igualmente, a um quintal vedado, com vestígios de abandono, dada à quantidade de capim.
No local, o agressor desferiu um golpe de faca no pescoço do menor. Um dos familiares da vítima, António Afonso, disse desconhecer como o menino se livrou das garras do atacante e conseguiu chegar a casa de um vizinho pedir ajuda, mesmo com o ferimento grave.
Câmaras da vizinhança mostram o momento em que o rapaz foi interpelado, mas as imagens não ajudam a identificar o rosto do agressor, uma vez que este estava encapuzado.
Matou-se um candidato a jornalista
Francisco Filipe Jorge, de 15 anos, não teve a mesma sorte de Gouveia e de Frederico, ao tornar-se na segunda vítima mortal provocada pelo mesmo grupo de supostos sanguinários. Com isso, matou-se o sonho de o adolescente vir a ser jornalista.
Aos prantos, a mãe do menor, Filipa António, explicou que o filho tinha desaparecido no dia 14 deste mês, por volta das 19h00, tendo sido encontrado dois dias depois sem vida, às 12h00, num terreno baldio, a escassos metros de casa.
Quando foi apanhado pelos marginais, o menor tinha saído para ir à busca de uma sobrinha em casa de "uma irmã da igreja”. "As horas se passaram e o meu filho não voltou”, explicou a mãe.
A aflição aumentou ainda mais quando o relógio marcava 22h00, por isso, saiu à procura do filho, tendo se deparado apenas com a neta, que a informou que Francisco Jorge não a tinha ido buscar.
Dada a confiança que tinha pelo filho, que era um fiel das Testemunhas de Jeová, Filipa acreditou logo que alguma situação de perigo ocorria com Francisco, pensamento que veio a se confirmar dois dias depois, quando recebeu a informação do óbito.
Imagem tatuada na mente da mãe
No mesmo dia do sumiço do menor, a mulher dirigiu-se à Esquadra do Camama, onde participou o desaparecimento do filho, mas foi informada pela Polícia que só podia começar a procura 24 horas depois dessa ocorrência.
A família, explicou, não parou em momento algum, tendo acorrido aos hospitais e morgues. O pai ainda chegou a colar fotografias do menino nas paredes do quintal onde foi encontrado morto, mas não se apercebeu que ali estava o cadáver do filho.
No dia seguinte, por volta das 12 horas, a mãe recebeu uma chamada que dava conta de um corpo encontrado num quintalão. "Ao chegar lá, dei com o meni-no estatelado no capim e com um grande ferimento no pescoço”, lamentou a mãe, enquanto cortava o discurso com choros de dor pela perda.
Para Filipa António, a imagem do filho deitado no capim e ensanguentado não sai da sua mente. "Ele completaria 16 anos anteontem. Era um orgulho para nós”, disse a mãe, para avançar que o adolescente estudava a 10ª classe, no curso de Ciências Económicas e Jurídicas.
O pai de Francisco adiantou que o caso do assassinato já é do domínio das autoridades policiais, porém, a família ainda não teve acesso ao número do processo-crime.
Sobre o cidadão detido pelas autoridades, o pai de Francisco Jorge referiu que espera que este indivíduo ajude nas investigações, para que os autores desses crimes hediondos possam ser responsabilizados.
Um "artista plástico” vivia em Evânio Magalhães
Antes de Francisco, o agressor tinha atacado, com o mesmo modus operandi , o adolescente Evânio Magalhães, de 14 anos. No dia 16 de Abril saiu de casa sem o conhecimento dos pais, por volta das 22h00, para encontrar um amigo. E não mais voltou!
Não tendo dado conta da ausência do filho em casa, os familiares dirigiam-se ao serviço, quando foram informados de que o filho estava morto. "Tinha muita gente na rua e quatro jovens acenaram para mim no carro. Fiquei logo assustado, porque tive a impressão de ter visto o calção do miúdo, que devia estar em nossa casa a dormir”, referiu. O pai conta, com lágrimas, que o filho mais velho foi lá ver o que se passava e deu pelo Evânio, estendido no chão, já sem vida. O corpo estava atirado numa zona nobre, adjacente ao Projecto Casa do Sonho, no Camama.
Tal como no outro caso, neste, as câmaras de segurança da vizinhança mostram, igualmente, o momento que o rapaz saiu e foi abordado pelo suposto agressor no portão de casa. O atacante escondeu o rosto, tendo aproveitado o peito da vítima para não ser identificado.
Teixeira Magalhães, pai de Evânio, explicou que o menino era um bom exemplo de filho e gostava de artes plásticas. "Estamos, há quatro anos, neste bairro e ele foi o aluno que representou a escola no concurso de Artes Plásticas”.
Evânio gostava de desenhar desde pequeno. O pai afirma que, aos cinco anos, o rapaz já lia e escrevia. Hoje, o sonho de ver o filho transformado num artista plástico está sepultado no Camama, cemitério onde repousa o cadáver do adolescente.
Moradores estão inseguros
Os moradores do bairro Chimbicato, município do Talatona, mostram-se preocupados com a onda de crimes violentos na circunscrição.
Até ao momento, estão contabilizadas cinco vítimas, das quais duas mortais. Dois rapazes estão a recuperar das agressões e um outro está em estado grave numa clínica privada.
O morador António Afonso disse que, nos últimos dias, a população se sente insegura, um sentimento que toma conta de todos, principalmente das crianças.
Além dos menores degolados, o bairro tem registado vários assaltos à mão armada, perpetrados por supostos motoqueiros.
O bairro do Chimbicato está dividido. Tem uma zona nobre, com casas bem estruturadas, e a de baixa renda, onde ocorre boa parte dos crimes. Mas, as quatro vítimas dos ataques com cortes ao pescoço são de famílias de média renda.
Durante a tarde que o Jornal de Angola fez esta reportagem, pode-se constatar que essa zona, conhecida como nobre, tem pouco movimento, uma vez que os proprietários das casas saem às primeiras horas do dia e só voltam ao anoitecer. As crianças ficam aos cuidados das empregadas domésticas.
Por causa da onda de assassinatos, a senhora Maria João, há seis anos no bairro, disse que, por essas semanas, não tem mandado os filhos à escola, com medo de que algo errado lhes possa acontecer. "Precisamos que coloquem aqui uma esquadra móvel, para acabar com essa onda de mortes e assaltos”, clamou
Psicólogo criminal fala em "serial killers”
O psicólogo criminal Xano Moreira considerou que o comportamento do indivíduo que mata uma série de crianças é de um possível "serial killers”. O especialista explicou que esta é a característica de todo o indivíduo que comete uma série de homicídios, durante algum período de tempo, com pelo menos alguns dias de intervalo.
O psicólogo criminal referiu que o assassino tende, através do crime que comete, deixar a sua assinatura no local ou na vítima. "Ao arrancar a garganta e seleccionar as idades das vítimas que persegue, nos leva a entender que ele seja um possível serial killers”, destacou. Xano Moreira acrescentou que esse tipo de pessoa não mata para roubar algum bem material das vítimas, mas fá-lo por algum sentimento no seu interior e entende preencher esse vazio, cometendo assassinatos bárbaros.
Casos podem estar ligados a crenças religiosas
Ao vir a ser um grupo, o psicólogo criminal suspeita, tal como afirmou o SIC, que o(s) autor(es) desses crimes esteja ligado a certas crenças religiosas, tendo explicado que a nível do mundo os "serial killers” também estiveram enquadrados em credos.
Xano Moreno avançou que a diferença é que, quando o assassinato em série é motivado por seitas religiosas, o interesse muda. "O criminoso, por norma, quando mata, a vítima é vista como um sacrifício, ou seja, é uma oferta ao deus a que ele acredita”.
Um assunto de saúde pública
Para a psicólogo clínico Paxi Pedro, o facto que está a ocorrer no Camama vai originar várias consequências, entre as quais medo, insegurança, desconfiança, instabilidade na vizinhança, o que acaba por ser um assunto de saúde pública. Quanto às implicações psicológicas nas vítimas, Paxi Pedro afirmou que, depois da recuperação, as vítimas poderão ter fobia social, medo de andar na rua sozinhos, momentos de insónias, arrependimento e de profunda tristeza.
O psicólogo alertou que a imaginação constante do triste episódio poderá levá-los a um sentimento de revolta.
Alerta às famílias para maior orientação aos filhos
O sociólogo Carlos Conceição alertou as famílias a serem mais sólidas e a tomarem maior cuidado na orientação dos adolescentes e jovens.
Esclareceu que se está perante um facto incomum, que envolve adolescentes e jovens residentes no mesmo perímetro da Camama. "Podemos estar diante de um grupo de jovens que desencadeia comportamentos desviantes que, certamente, culminam em crime”, disse o sociólogo, para avançar que atitudes anti-sociais evoluem para situações criminais.
"Tudo isso por conta de um fenómeno antigo. É preciso lembrar que temos o problema de desarranjo sócio familiar, a chamada desconstrução ou desestruturação das famílias em Angola”, disse, acrescentando que muitos adolescentes enveredam para essas práticas.
Lei prevê punições de até 25 anos de prisão
Ao jurista Almeida Chingala destacou que os relatos da Camama remetem para a presença de um crime de homicídio qualificado, cuja pena vai de 20 a 25 anos, nos termos do artigo 149 do Código Penal.
Almeida Chingala alertou para investigar melhor e de forma profunda esses episódios da Camama, ao avançar que "essa situação me remete a apelar às autoridades para aferir se não estamos em presença de tráfico de órgãos humanos”.
Enquanto isso, o jurista chamou a atenção para a necessidade de haver denúncias e campanhas de sensibilização, para que as crianças não saiam à noite ou sozinhas para locais isolados e perigosos”, concluiu.
Detido um suspeito
Um indivíduo, de 22 anos, detido pelo SIC, na semana passada, é tido como um dos principais suspeitos dos crimes de assassinatos ocorridos no Chimbicato, Distrito Urbano da Camama.
O porta-voz do SIC, Manuel Halaiwa, esclareceu que as autoridades policiais e de investigação criminal vão continuar empenhados para esclarecer essas mortes.
"Pedimos a calma da população, porque já foram mobilizadas todas as forças da Ordem para garantir a segurança no local e dar esclarecimentos aos actos bárbaros que vêm a acontecer”.
Fonte: Jornal de Angola
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