Dia Mundial da Hemofilia: 350 mil pessoas em todo o mundo sofrem com a doença hereditária


Mais de 350 mil pessoas no mundo sofrem de hemofilia, sendo que 70 por cento têm históricos familiares e 30 por cento são casos isolados, segundo dados da Federação Mundial da Hemofilia, parceira da Organização Mundial da Saúde. (OMS).

Este ano, o tema escolhido pela OMS para celebrar o Dia Mundial da Hemofilia, assinalado hoje, é "Acesso para Todos: Prevenção de sangramentos como padrão global de atendimento”. A escolha foi feita com o objectivo de chamar atenção dos Governos mundiais sobre a importância de se dar um melhor tratamento profilático aos pacientes hemorrágicos.

Em Angola, a Associação dos Hemofílicos tem registado, de forma activa, mais de 200 pacientes. De acordo com dados obtidos da procura diária deste serviço nas várias unidades hospitalares, estima-se que existam no país cerca de três mil doentes hemofílicos. "Todos os dias, os hospitais do país recebem pessoas com claros sinais da patologia, mas que por falta de condições não se chega a um diagnóstico preciso”, explicou o vice-presidente da associação.

Kaunda da Gama disse que a província de Luanda continua a ser a que maior número de pacientes possui, seguida do Huambo, Bié e Cuanza-Sul, de acordo com os dados. "Nas demais províncias do país ainda temos muitas dificuldades para fazer chegar a medicação”.

O vice-presidente da Associação dos Hemofílicos de Angola disse que, por falta de medicação e de especialistas na área de Hematologia, muitos pais são obrigados a mudarem-se para a capital do país, a fim de estarem mais próximos das unidades hospitalares com técnicos especializados, quer na abordagem da doença como na administração dos medicamentos.

Definição da doença

O médico especialista em Hematologia Feliciano Mangovo define Hemofilia como sendo uma doença do fórum genética rara, essencialmente hereditária que compromete a capacidade do corpo em formar coágulos sanguíneos, processo natural e necessário ao organismo para estancar qualquer hemorragia.

De acordo com o médico hematologista, esta condição do corpo leva a que as pessoas sangram muito e facilmente mesmo após pequenas lesões, criando assim contusões, o que aumenta o risco de hemorragias nas articulações e algumas vezes no cérebro.

O especialista adiantou que apesar da hemofilia ser uma doença maioritariamente congénita, ainda assim existem casos de pessoas que adquiriram a patologia, especialmente as do sexo masculino.

Os especialistas

Um hematologista é o especialista médico que estuda e trata doenças do sangue e de órgãos hematopoéticos, onde se formam as células do sangue. São estes especialistas que cuidam de pacientes com leucemia, linfoma e outras doenças malignas, assim como algumas benignas, entre as quais as anemias adquiridas ou congénitas e as coagulopatias, como a Hemofilia.

A hemofilia tende a afectar mais o sexo masculino porque, está relacionado ao cromossoma X, que é o feminino. Por isso, as mulheres são as portadoras, que quase sempre transmitem aos filhos do sexo masculino.

Um olhar sob a genética dos cromossomas

De acordo com Feliciano Mangovo, do ponto de vista da dotação cromossómica no organismo, existe o par 23, onde o homem tem um cromossoma X e um Y, este Y é que determina o sexo masculino. "Já a mulher tem dois cromossomas X e X, um que recebeu do pai e o outro da mãe”.

No caso de um homem não ser hemofílico e uma mulher ser portadora da doença, ao fazerem filhos, se for do sexo masculino, ele recebe o cromossoma Y do pai e o X da mãe, porém que já tem essa alteração genética, logo a criança nasce com hemofilia.

Caso seja o pai, o doente hemofílico, todas as filhas vão ser portadoras de hemofilia, porque receberam o cromossoma X do pai que tem a doença. "Mas as mulheres, dificilmente têm manifestações hemorrágicas, porque como têm dois cromossomas XX, normalmente, aquele que tiver afectado é inactivo e o bom faz a compensação. Por essa razão não têm crises. O único porém é que ainda podem transmitir a doença aos filhos”.

Quanto ao motivo dos hemofílicos terem muitas hemorragias, o hematologista explicou que, existem proteínas e vários factores no organismo que influenciam a coagulação do sangue e estes agem numa sequência determinada, para no final formar o coágulo ou a interrupção do sangramento depois de um determinado tempo. "Mas, infelizmente, as pessoas portadoras de hemofilia não possuem nem as proteínas e muito menos os factores que ajudam o sangue a coagular, por isso, sangram muito mais do que o normal”, prosseguiu.

A hemofilia, sublinhou, é uma doença crónica e está dividida em três níveis, leve, moderado e grave. "Os pacientes com hemofilia do tipo leve podem não apresentar sinais da doença na infância e adolescência, mas surgem complicações na fase adulta ou durante um acidente ou até mesmo numa cirurgia”, apontou.

O drama de uma mãe que enterrou três filhos por causa da hemofilia

Depois de ter enterrado três filhos ainda menores, sem saber as causas das mortes, Maria António (nome fictício) já não queria mais engravidar, com medo de que depois de alguns anos, o próximo bebé também voltasse a morrer.

Por isso, decidiu separar-se do marido e voltar para a província do Bié, onde nasceu, para ficar próximo dos pais, e, talvez, fazer um tratamento tradicional para descobrirem em família as reais causas da morte dos três filhos.

Mas as idas e vindas às casas de quimbanda não lhe davam explicações certas sobre as mortes dos filhos. Por vezes, diziam que era a família do esposo quem os matou, por não gostarem dela. Outras vezes afirmavam que eram os próprios familiares de Maria, a fim de conseguirem mais terras para cultivar.

Desesperada e sem saber o que fazer, Maria afastou-se dos familiares, voltou para Luanda, para tentar organizar a vida. Ao fim de três anos, passou a viver com um outro homem, com o qual acabou por engravidar de gémeos.

"Era o realizar de um sonho”, lembra, ao falar do sentimento de voltar a ser mãe e de gémeos. "Durante as consultas pré-natais recebia sempre garantias de que as crianças eram saudáveis. Por isso, fiquei despreocupada e feliz”, conta.

No dia 7 de Julho, 2012, Maria e o marido deram as boas-vindas aos gémeos André e Adriano. "Lembro como se fosse hoje. Era uma quarta-feira e eles nasceram com dois quilos e meio. Foi uma alegria enorme voltar a ter dois bebés nos meus braços”, recorda.

Aparentemente, os gémeos nasceram saudáveis e, até aos dois anos, parecia tudo normal. Mas, infelizmente, a administração de uma vacina intramuscular nas coxas direitas dos meninos, num dos centros de Viana, onde a família reside, mudou tudo. Começava assim uma intensa jornada de idas e vindas aos hospitais em busca de um diagnóstico.

No local onde se deu a vacina, não parava de sangrar, mesmo depois de ser atendido no Hospital Municipal de Viana. Preocupado com o quadro clínico dos pacientes, os médicos decidiram encaminhá-lo ao Hospital Pediátrico de Luanda David Bernardino, onde, depois de três horas e várias intervenções, foi possível estancar o sangramento.

Assim, surgiu o primeiro alerta de que alguma coisa não ia bem no corpo dos gémeos. Dois meses depois, enquanto brincavam, os meninos feriram-se nos joelhos, e tal como na primeira vez, o sangramento não parava e foram sentindo fortes dores nas articulações.

"Como desta vez estava muito mais atenta, percebi que estes sinais apresentados por eles eram os mesmos que os meus outros três filhos já falecidos também tinham, só que com muito menos intensidade. Então, decide fazer uma consulta mais profunda para não voltar a os perder”, disse. 

Os teus filhos têm hemofilia

Com o passar do tempo, mesmo sem ferimento algum, o sangramento dos gémeos surgiam nas narinas, na gengiva e com frequência sentiam dor nas articulações, ao ponto de não conseguirem andar.

Após vários exames complementares no Hospital Pediátrico David Bernardino e algumas clínicas privadas, o diagnóstico chegou. "Os médicos chamaram-me e ao esposo para dizer que os bebés sofriam de hemofilia, uma doença hereditária e sem cura.  Ao receber aquele diagnóstico, as nossas vidas transformaram-se num pesadelo, porque nunca tinha ouvido falar nisso. Era algo muito estranho”, contou.

As más notícias, relembrou, não ficaram por aí. "Como era uma doença hereditária, foi preciso determinar quem tinha passado a doença aos filhos. O mundo desabou quando descobri que era eu, a própria mãe, a portadora da doença”.

Quando descobriu o resultado dos exames, Maria disse que ficou muito abalada. "Não é fácil saber que era a portadora de uma doença que desconhecia e fui a causadora da morte dos meus três filhos. Cheguei a me separar do primeiro marido, quando na verdade a doente era eu. Pior ainda, agora estraguei a vida dos meus gémeos”, lamentou, acrescentando que nunca teve crises e até hoje se recusa a aceitar ser a pessoa portadora.

Apesar de continuarem a fazer tratamento na Pediatria de Luanda, os gémeos André e Adriano, actualmente com 11 anos, estão a perder os movimentos da perna direita, porque o joelho já não suporta o peso do corpo. Agora andam com ajuda de muletas.  

"Os médicos nos disseram que esse problema tende a agravar-se, porque os gémeos padecem de hemofilia do tipo A, de nível elevado e, com o tempo, pode acabar por perder, também, os movimentos da perna esquerda e usar uma cadeira de rodas para o resto da vida”, explicou aos prantos.

Para Maria, caso a medicação, que ajuda a controlar a doença, estivesse disponível até nas farmácias e a preços baixos, os gémeos teriam uma vida quase normal como as demais crianças. "Mas, infelizmente, a medicação só é dada quando os pacientes apresentam as crises hemorrágicas”, frisou.

Os gémeos que gostam muito de correr, por seu lado, têm olhares tristes porque já não conseguem brincar à vontade com os amigos e sofrem de bullyng tanto na escola como na vizinhança. "Alguns meninos, os chamam de aleijados. Então, para não estarem sempre a lutar, dificilmente os deixo sair de casa”.

Por conta das limitações que a doença causa, adiantou, os gémeos estão a estudar apenas a 4ª classe, mas com muitas ausências, porque quando os sangramentos começam e têm de ficar em casa. No período em que as dores das articulações são mais intensas, referiu, também não conseguem sair de casa. "Tudo isso prejudica o aprendizado deles na escola”.

"Antes quando tivessem as crises hemorrágicas, os gémeos eram assistidos na Pediatria de Luanda, mas hoje já são atendidos no Hospital Hematológico Victória do Espírito Santo, instituição indicada para o diagnóstico e tratamento das patologias ligadas ao sangue”, destacou.

Apesar das limitações dos filhos, Maria e o esposo fazem tudo que podem para oferecer a estes uma vida digna. "Estamos a preparar as condições para ainda este ano, migrarmos para um país da Europa, onde haja as condições, quer médica, quer medicamentosa, para os meus filhos terem melhor qualidade de vida”.

Maria informou que devido às complicações da doença teve que deixar de trabalhar, para ficar mais próxima dos filhos. "Actualmente, temos feito negócios, para sobrevivermos, apesar das várias dificuldades que passamos”.

Em relação a ter outros filhos, disse que não quer sequer pensar mais no assunto. "Já me sinto culpada por trazer nesse mundo filhos doentes. Por isso dou tudo de mim para que não falte o essencial aos meus gémeos. Se eu soubesse que era portadora de hemofilia, não faria filhos nunca”, disse.

Sinais doença

Por ser uma doença hemorrágica, os pacientes podem ter sangramentos de forma espontânea, ou seja, sem qualquer ferimento aparente, através de mucosas, como as gengivas, nariz, ou nas articulações.

O médico especialista informou que podem surgir marcas avermelhadas na pele, causadas por um sangramento debaixo da pele, dor forte, ou restrição de movimento em lugares como joelhos e tornozelos, por conta de sangramentos internos e cortes que levam muito tempo para parar.

Em alguns casos, também podem ter hemorragias internas entre os músculos e no cérebro (Acidente Cardiovascular hemorrágico) e caso não sejam assistidas prontamente, o paciente acaba por morrer.

Para o hematologista, nos casos menos graves das hemorragias cerebrais, as sequelas são dor de cabeça crónicas, ataques apopléticos ou diminuição do nível de consciência.

Os diversos tipos de hemofilia

O hematologista salientou ainda que a hemofilia está dividida em tipo A e tipo B. A do tipo A é causada por deficiência do factor de coagulação oito, já a B é causada por deficiência do factor de coagulação nove.

"É a razão pela qual quando há sangramentos ou para prevenir que hajam sangramentos, os doentes hemofílicos, do tipo A, devem ser medicados com o concentrado do factor 8. No caso dos do tipo B é usado um concentrado do factor 9, que é feito via intravenosa (veia), para se repor, de forma célere, estes factores que estão em falta no organismo e estancar o sangramento”, explicou o hematologista.

As formas de diagnóstico, continuou, consistem em exames, como o coagulograma completo e outros exames associados ao sangue. "No país, estes exames apenas são feitos no Hospital Pediátrico David Bernardino, e agora, no Hospital Hematológico Victória do Espírito Santos, que actualmente assiste maior parte dos doentes hemofílicos”, realçou.

No Hospital Victória do Espírito Santos, contou, são acompanhados cerca de 106 hemofílicos entre crianças e adultos. Na visão do especialista, o ideal seria que todos os hemofílicos fizessem a prevenção das hemorragias com administração do factor em falta, seja A ou B, pelo menos uma vez por semana. "Nunca se sabe quando vai ocorrer um sangramento, por algumas vezes ser espontâneo, por isso a prevenção deveria ser a chave”, justificou.

Questionado sobre os motivos que levam os pacientes a não fazerem a prevenção, Feliciano Mavongo explicou que a medicação é muito cara. "Está acima dos 80 mil kwanzas e são poucas as farmácias que vendem”, disse, acrescentando que a medicação da Pediatria, recebida através de convênios com outros países, serve apenas para acudir situações pontuais.

"Na ausência de medicação, usamos os hemocomponentes do sangue, que têm a capacidade de fornecer aos hemofílicos o factor em falta. Esse tratamento é feito em forma de transfusão ", frisou. 

O hematologista acrescentou que se forem bem controlados com medicação e consultas de rotinas, os hemofílicos podem ter uma vida normal, de contrário as crises vão ser constantes, em especial no caso daqueles que são moderados ou graves.

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