Elisa Gaspar: “Estamos a fazer todos os esforços para acabar com os falsos médicos no país”


A Ordem dos Médicos de Angola é uma instituição que regula o exercício da Medicina e atribui a cédula profissional ao médico para trabalhar. A bastonária falou sobre a realidade médica em Angola, enaltecendo a qualidade da formação médica feita no país para especialistas, não deixando de lado a necessidade de se melhorar cada vez mais. Elisa Gaspar aborda os erros médicos, a problemática dos falsos médicos e o novo modelo de receita médica uniformizada

Qual é o entendimento que a Ordem dos Médicos tem em relação aos falsos médicos?

O médico é a pessoa que estudou 6 anos de Medicina (Licenciatura em Medicina). Todos os que não fizeram essa formação não podem ser considerados médicos. Muitos são profissionais de Saúde que se fazem passar por médicos, outros são curiosos e sem noção do que é o trabalho com seres humanos e, mesmo assim, se fazem passar por médicos.

Como é que alguns conseguiram o número da Ordem para agir como médicos?

Havia aqui na Ordem dos Médicos uma rede de falsificadores, que fazia a atribuição de números de cédula profissional a indivíduos que se faziam passar por médicos.

Essa realidade dos falsos documentos terminou ou continua na Ordem dos Médicos?

Temos estado a passar um pente fino aos processos, fazendo o cadastramento de médicos que vêm actualizar os documentos na nova base de dados. Temos trabalhado com os conselhos provinciais para aferir a veracidade dos processos. Alguns documentos são duvidosos, sobretudo os processos documentais provenientes da República Democrática do Congo (RDC).

Conseguiram comprovar a documentação junto das autoridades da República Democrática do Congo?

Sim, preparámos uma delegação e fomos até à vizinha RDC, onde trabalhámos com as entidades competentes como o Ministério do Ensino Superior, diferentes universidades e a Ordem dos Médicos local. Ficámos a saber que muitos nomes que levámos, de supostos médicos ali formados, alguns eram falsos, ou seja, nunca estudaram lá, não faziam parte da base de dados das referidas instituições.

Mas os falsos médicos só são os expatriados ou angolanos também, senhora bastonária?

Temos alguns angolanos que não fizeram licenciatura em Medicina, mas que trabalhavam como médicos. Ou seja, também recebemos denúncias de falsos médicos nos conselhos provinciais. Muitos falsos médicos estão detidos, porque houve denúncia a partir de entidades afectas à Justiça. Verificámos na base de dados e notámos que não são médicos.

A Ordem dos Médicos conseguiu estancar definitivamente esse problema?

Como lhe disse, isso é um processo, nós estamos a trabalhar arduamente. Ainda existem muitos processos por apreciar, mediante actualização de processos individuais. Os colegas que têm vindo ao recadastramento facilitam o trabalho. Os falsos médicos, claro, fogem. Os que atrevidamente sabem que não são médicos, mas ainda assim vêm, conseguimos detectar e explicar que não são médicos, porque já temos a confirmação de outras universidades, onde os mesmos foram adquirir o documento.

Todos os médicos podem fazer inscrição e receber o número da Ordem?

Eles podem inscrever-se, mas só recebem o número quando obtivermos confirmação que estudou numa determinada universidade. É um trabalho árduo que estamos a realizar em colaboração com várias instituições. Há instituições que enviam atestados médicos, justificativos e relatórios médicos passados por supostos médicos, que quando verificamos na base de dados, o nome não consta. Logo informamos às instituições que eles não constam no nosso registo. Por isso, pedimos colaboração das instituições para acabarmos com os falsos médicos, que têm causado muitos estragos no seio da população.

Que consequências pode um falso médico causar aos pacientes?

Hoje em dia, temos inclusive crianças com problemas cardíacos e renais como resultados do trabalho feito por falsos médicos, que fazem receitas inapropriadas. Estamos a trabalhar para estancar as falsas receitas. A Ordem dos Médicos tem agora uma nova Cédula Profissional, com um código de cada médico. O Ministério da Saúde formou uma comissão e trabalhamos em conjunto para termos um modelo único de Receita Médica Nacional. Isso porque existem medicamentos que só podem ser receitados por um médico. Na periferia, temos um a dois médicos a trabalharem nos centros de saúde. O enfermeiro pode passar um paracetamol, mas o mesmo não tem autorização para prescrever antibióticos e outros fármacos.

Existem zonas recônditas em Angola onde não existem médicos, sendo os enfermeiros que atendem as populações. Quem é que passa as receitas médicas nesses casos?

Sim, mas nestas áreas, que só têm enfermeiros, o profissional tem noção que há medicamentos a que não podem passar receitas. Tem de ser um médico a fazê-lo. Eu não sou cirurgiã, portanto, não posso fazer cirurgia. Um enfermeiro não pode fazer actos médicos.

O novo modelo de receita médica como vai funcionar no país?

Essa foi uma ideia da Ordem dos Médicos e tivemos que falar com os parceiros e formou-se uma comissão para em conjunto trabalharmos. E já demos até alguns passos concretos. Por exemplo, quando há uma receita, as farmácias vão conseguir detectar se quem passou a receita é ou não médico, mediante um código QR, onde a receita pode ou não passar.

Há um indivíduo que durante muito tempo se auto-intitulou médico que foi medicando pacientes para gerarem filhos, mas os pacientes não tiveram sucesso e tiveram problemas de saúde. Que consequências podem ter as pacientes que tomaram os medicamentos receitados por esse falso médico?

Cada organismo reage de forma diferente. Com certeza que são os relatos de cada mulher que poderão levar a alguns diagnósticos, algumas patologias que poderão adquirir a partir dos medicamentos ingeridos durante o tempo em que durou o tratamento.

Os falsos médicos são mais detectados em clínicas privadas ou em hospitais públicos?

Em clínicas privadas, quando são os mesmos a construírem essas unidades sanitárias, fica muito difícil. Porque em clínicas de renome é difícil haver um falso médico. Pode haver um erro médico, mas falsificação de conduta ou actos médicos, não acontece. Como sabe, esse caso concreto ocorreu numa clínica privada. Em hospitais públicos também temos esses casos, por isso estamos a fazer caça ao homem e, muitos deles, quando se apercebem que estamos a tratar desse assunto, acabam por não mais voltar a esses hospitais. E mesmo muitos supostos médicos que vinham com o objectivo de obter o número da Ordem, quando se apercebem que estamos a trabalhar com as entidades competentes, acabam por desaparecer.

Quais as outras nacionalidades onde os falsos médicos supostamente estudaram?

A maior parte dos casos de falsos médicos alega que estudou na República Democrática do Congo. Muitos até são nossos compatriotas que estiveram por lá refugiados. Tem aparecido um ou outro caso de cubanos e vietnamitas com documentação falsa, e nós damos o devido tratamento.

Que tipo de fiscalização tem exercido a Ordem dos Médicos junto das clínicas?

Nós não fiscalizamos as clínicas. Nós atribuímos o número de profissional para o médico trabalhar. Agora, quando há uma queixa concreta do médico que tenha feito algo numa clínica, aí sim, nós, pela Ordem dos Médicos, vamos saber o que aconteceu para que, dentro das normas do nosso estatuto, se chame esse médico à razão.

Os médicos têm sido punidos por erros ou actos de negligência médica?

Sim, têm sido punidos por isso. Tenho dito aos colegas que, enquanto não havia sentado na cadeira como bastonária, não sabia que havia tantas queixas e processos de médicos em tribunal. Quase todos os dias chegam ao conhecimento da Ordem situações de erros médicos em unidades sanitárias privadas e públicas. O que fazemos é formar equipas de inquérito, pedir explicações. Boa parte dos casos é de foro criminal e encaminhamos ao tribunal, estando estes casos mais virados a erros de cirurgia.

Quantos médicos estão registados na Ordem em Angola?

Quando chegámos à direcção da Ordem dos Médicos havia cerca de seis mil médicos inscritos, mas dando continuidade ao processo, estamos actualmente em 9.156 médicos inscritos.

A bastonária está no primeiro mandato, perto do fim...

Este é o primeiro mandato, terminado em Abril, mas como temos um processo em tribunal, que possivelmente teremos a sentença em Junho ou Julho, continuamos a trabalhar, até ao desfecho final do caso. Quanto ao litígio em si, não gostaria de me pronunciar.

Como é que a Ordem olha para a formação do médico em Angola? O ensino da Medicina é dos melhores ou o país precisa melhorar?

Temos que melhorar muito. Temos unidades públicas de qualidade, assim como existem outras unidades privadas também com uma qualidade excelente, onde se formam bons técnicos, quer a nível da Medicina, assim como de Enfermagem e outras especialidades. E temos ainda escolas que precisam de melhorar a qualidade da formação nas Ciências da Saúde.

O que faz a Ordem dos Médicos para melhorar a qualidade na formação?

A Ordem dos Médicos criou 46 colégios de especialidade, cada um com o seu especialista e com os programas de formação. Somos parceiros do Ministério da Saúde e de outras instituições. Esses programas de formação são os que todos seguem para formar especialistas. Os colégios fazem os programas de formação e entregam ao Ministério da Saúde. São os colégios, em parceria com o Ministério da Saúde, que dão idoneidade formativa às unidades de formação.

Por que razão os colégios fornecem os programas ao Ministério da Saúde?

Porque são os colégios que conhecem melhor as especialidades na sua área de formação, sobre os módulos a estudar. Os hospitais são do Ministério da Saúde e somos parceiros. A parceria tem sido boa e vamos formar médicos especialistas em todo o país. Portanto, a província com mais potencial numa área recebe médicos de outras províncias para formação em diferentes especialidades. Os especialistas formados têm sido distribuídos para trabalhar em todas as 18 províncias do país. Temos amigos parceiros como Portugal e Brasil, onde, através da Ordem dos Médicos, são enviados colegas para fazerem valências nas diferentes especialidades que não temos em Angola.

A bastonária foi eleita vice-presidente da comunidade médica da CPLP. O que isso representa?

A minha indicação para esse cargo tem facilitado os contactos de trabalho para enviar médicos angolanos ao exterior. Falamos com o bastonário da Ordem dos Médicos de Portugal, o presidente do Conselho de Medicina Federal do Brasil e conseguimos abrir portas para que colegas fossem fazer especialidades. Dentro de alguns anos, vamos ter mais médicos especialistas, porque precisamos desses profissionais de Medicina em todas as áreas.

O que faz em concreto a Ordem dos Médicos?

A Ordem dos Médicos de Angola é uma instituição de direito público de âmbito nacional que goza de autonomia administrativa, jurídica, financeira e patrimonial. Actualmente, está presente em todas as 18 províncias do país e trabalhamos para termos representação em todos os 164 municípios, com a descentralização dos serviços. A Ordem controla os médicos e estes devem ter um número, carteira profissional e uma declaração actualizada, documentos sem os quais não pode exercer medicina no país.

Os médicos de clínica geral já se podem especializar sem grandes dificuldades?

Nós proclamamos 46 colégios de especialidades que é uma qualificação que damos ao médico que tem especialidade, porque temos muitos clínicos, mas também muitos especialistas. É preciso que estes especialistas estejam dentro do seu colégio para que assim proceda onde estiver. Demos independência aos colégios que estão representados nas províncias. Por exemplo, o colégio de dermatologia que está na Huíla já tem uma representação no Conselho Regional Norte.

Qual é a durabilidade da formação médica especializada em Angola?

As especialidades sofreram remodelação, porque havia médicos que ficavam 10 anos a fazer uma especialidade. Isso porque não havia exames, então com o avanço da Medicina, pretendemos ter mais médicos especialistas. Com a parceria do Ministério da Saúde, conseguimos reduzir os anos de formação especializada. As especialidades que não são cirúrgicas a formação dura três anos, e as cirúrgicas fazem-se em quatro anos.

Os médicos já têm seguro?

Temos parceria com a ENSA Seguros, o que tem ajudado os médicos. A ENSA Seguros fez um pacote de seguros para os médicos com uma bonificação de 50 por cento. Quer para o seguro obrigatório de responsabilidade civil, que tem a ver com o médico que comete um erro, a ENSA está aí para cobrir as despesas. Por exemplo, nós os especialistas pagamos 14 mil kwanzas para obter apólice e a ENSA dá sete milhões. Este dinheiro tem estado a servir no caso do médico cometer um erro, para poder cobrir as despesas. Se operou mal e a família quer uma segunda cirurgia numa determinada clínica, o médico tem seguro para cobrir essa despesa.

Mas há esse entendimento por parte dos médicos?

Muitos médicos pensam que o Ministério, a Ordem ou o hospital é que tem de pagar o seguro dele de vida. Cada um deve ter a cultura de fazer o seu seguro de vida. Os colegas não estão a perceber que essa bonificação diminui os custos dos seguros para médicos. Todo o médico que faça um seguro com a ENSA, dentro desse acordo, ele só paga metade, o que é valioso para a Ordem dos Médicos. A parceria com a ENSA foi feita quando me apercebi que havia muitos erros médicos, e isso vem ajudar o médico. Mesmo os médicos que funcionam em clínicas privadas, são obrigados a ter um seguro de responsabilidade civil.

Os médicos estrangeiros também são inscritos aqui na Ordem dos Médicos?

Todos os médicos estrangeiros são inscritos na Ordem para ter o número que os autoriza a trabalhar. Eles vêm já com processos completos. Quando começámos com esse mandato a maior parte dos médicos cubanos não estavam inscritos na Ordem dos Médicos. Reuni com a Cooperação Cubana, Russa, Chinesa e a Vietnamita, onde acertámos que os médicos se deviam inscrever na Ordem. E assim ficou tudo ultrapassado. Os directores clínicos dos hospitais têm que ter consciência que têm um profissional diante de si que é de facto médico.

E como ficam aqueles médicos que vêm ao país em missões de filantropia?

Esses médicos escrevem primeiro para a Ordem dos Médicos e autorizámos a sua vinda. Há dias, autorizámos um médico odontologista que trabalhou numa zona recôndita da província do Cuando Cubango e tratou da saúde dentária daquela população. Ele enviou antes toda a documentação autenticada e o autorizámos a trabalhar depois da devida confirmação dos dados. Aquando da vigência da Covid-19, também vieram ao país muitos médicos para trabalhar e tiveram o mesmo procedimento.

A descentralização dos serviços trouxe alguma mais-valia para o vosso trabalho?

A descentralização dos serviços permitiu perceber que na maior parte dos municípios há um ou dois médicos devidamente enquadrados num determinado hospital. Mas o número de médicos ainda não corresponde aos anseios da população. Temos que formar mais médicos e mais especialistas para melhor servirem as nossas populações.

Os médicos estão bem servidos em termos de condições sociais ou ainda há muito trabalho por se fazer?

Temos muito trabalho por se fazer para melhorar as condições sociais dos médicos, mas é preciso compreender que é caminhar que se faz o caminho. Acredito que futuramente as coisas vão melhorar.

Como está a Ordem em termos de condições de trabalho?

A contribuição com o pagamento de quotas por parte dos médicos permitiu melhorar as condições de trabalho aqui na Ordem. A realização de obras na sede permitiu dar maior dignidade ao trabalho, assim como a aquisição de meios rolantes para dinamizar o trabalho e pagar os ordenados dos funcionários.

Disse que o mandato terminou em Abril. Que avaliação faz do seu mandato?Considero muito positivo, na medida em que conseguimos realizar várias acções para dinamizar a actividade da Ordem dos Médicos, mesmo com a pandemia da Covid-19, que afectou de forma grave o país e o mundo."Estamos a fazer todos os esforços para acabar com os falsos médicos no país”

Perfil de Elisa Gaspar

A médica Elisa Pedro Gaspar nasceu em Malanje, no dia 11 de Setembro de 1963. É divorciada, mãe de três filhos e avó de seis netos. Ao fim-de-semana gosta de passear com as netinhas. É médica de profissão com a Cédula Profissional nº 937, da Ordem dos Médicos de Angola.

Tem o Diploma Superior em Saúde Pública Internacional, pelo Instituto de Saúde Carlos III, Madrid 2011, Diploma nº 183168 pelo Instituto Superior de Medicina de Vinnitsa (Ucrânia), na especialidade de Pediatria, e por decisão da Comissão Estatal de Exames de 25 de Junho de 1992 lhe foi conferida a qualificação de médica. Por decisão especial da Comissão Estatal de Exames recebeu o grau científico de Doutora em Medicina.

É igualmente mestre em Saúde Materno-Infantil, pelo Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, Recife – Brasil.

A actual bastonária da Ordem dos Médicos de Angola é também vice-presidente da Comunidade Médica da CPLP, presidente da Mesa da Assembleia da Federação Angolana de Basquetebol, coordenadora de Bolsas de Estudo do Comité Olímpico de Angola, coordenadora de formação da Covid-19 I-II Nível, coordenadora do Banco de Leite Humano em Angola, conselheira permanente do Conselho Nacional da Criança.

Elisa Gaspar foi militar das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA).

A médica é membro da Sociedade Angolana de Pediatria e do Comité Internacional de Pesquisa em Seres Humanos.

Foi atleta de basquetebol. Foi a primeira mulher membro de direcção do Clube Militar das Forças Armadas Angolanas, o 1º de Agosto.

Foi professora de Educação de Adultos das Obras Públicas (Lubango), assim como professora de Artes Plásticas na Escola Alda Lara, em Luanda.

Fonte: Jornal de Angola

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