Aborto: uma problemática que divide opiniões

 


O aborto é uma problemática que continua a dividir alas. De um lado, estão os que defendem a sua legalização e, do outro, o grupo que é contra e, por isso, pede a criminalização.

Apesar de aprovada no Código Penal como crime, a lei abre várias excepções que anuem os serviços médicos e a mulher a optarem pelo aborto, situação que a Igreja não aceita e condena.

Hoje, o Jornal de Angola traz várias opiniões sobre o assunto, que afecta muitas famílias. No mundo, o aborto foi a principal causa de mortes, em 2022, pelo quarto ano consecutivo, de acordo com o Banco de Dados de Saúde Worldometer. No total, 44 milhões de bebés foram mortos no ano passado, em consequência de interrupções de gravidezes.

O referido relatório é baseado em estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), embora essa agência afirme que 73 milhões de abortos induzidos ocorrem no mundo a cada ano.

Estudos, segundo as Nações Unidas, indicam que metade das gestações registadas, anualmente, no mundo são indesejadas, sendo que a desigualdade social, pobreza e violência sexual apontadas como as principais causas para isso.

A agência da ONU considera que a gravidez não planificada na adolescência está associada a desigualdades mais amplas que afectam, principalmente, as mulheres dos estratos sociais mais vulneráveis.

As principais causas das gestações acidentais seriam a dificuldade de acesso à educação sexual e reprodutiva, falta de métodos anticonceptivos, aspectos directamente ligados à violência sexual e pobreza.

Entre as várias pessoas que, por ter tido uma gravidez indesejada e optou pela interrupção, está Marquinha Pedro, de 34 anos.

Solteira, desempregada e mãe de dois meninos, moradora do bairro Cassequel do Embondeiro, vulgo Terra Vermelha, confessa estar arrependida pela prática do aborto, mas deixa clara que fez sem ser coagida. "Tomei a decisão sozinha”, refere.

Durante a operação, feita num espaço clandestino, a mulher passou mal, ao que considera os piores momentos da sua vida. Vomitou e sentiu muitas dores.

Além da vez que recorreu a um técnico de Enfermagem, Marquinha explica que já terá provocado outros dois abortos, através da toma de comprimidos, em casa. "Tive sorte, por nada de errado ter acontecido”.

Sobre os métodos que usou para a interrupção, a jovem já usou comprimidos, injecções e curetagem uterina. "As dores são sempre fortes, não importa o método ou o tempo de gestação”, disse.

Médico aconselha recurso a pessoas especializadas

João Simão, médico interno de Ginecologia e Obstetrícia, explicou que o aborto é feito por via de uma interrupção da gestação no período que vai até 22 semanas ou a expulsão do produto de concepção de um peso inferior a 500gm.

"Após 22 semanas, é considerado como parto. Se o produto de concepção, que for expulso pesar acima de 500gm, o contrário seria um parto imaturo”, realçou o especialista, para quem, em função da intenção da gestante, o aborto pode ser espontâneo ou provocado.

Sobre o primeiro, o médico João Simão referiu que se trata daquele produzido sem a intenção quer farmacológica quer outro procedimento.

Explicou que o aborto provocado é quando um profissional de Saúde ou uma pessoa, de forma consciente, ingere algum fármaco ou concorde que lhe seja introduzido algum instrumento com o objectivo de eliminar o produto de concepção.

Quanto à classificação do período que se produz o aborto, o gineco-obstetra referiu que pode ser precoce ou tardio. "A expulsão do produto de concepção, que ocorre até 12 semanas de gestação, é considerado como um aborto precoce”, disse, acrescentando que, até 22 semanas, é considerado tardio.

Do ponto de vista de estatística clínica, explicou que as queixas apresentadas pela doente levam a várias classificações, designadamente à ameaça de aborto, quando se observa sangramento, e colo fechado, sem saída do produto de concepção.

Além dessas classificações, também existe o aborto em curso que ocorre quando a paciente aparece com queixas de dores no baixo ventre e sangramentos.

O médico acrescentou que o aborto consumado tem a ver com a expulsão, que pode ser completa ou incompleta do produto de concepção. Já incompleto, disse, é quando expulsa determinadas estruturas do produto de concepção e restam algumas partes a serem eliminadas, como as membranas e a placenta.

Entretanto, referiu que o aborto completo é quando o especialista verifica que a paciente expulsou o produto de concepção. Nesses casos, não existe sangramento e o colo pode estar permeável ou mesmo sem dor.

Em qualquer uma das situações, João Simão aconselhou que esse seguimento seja feito por pessoas especializadas.

Cardiopatia é um risco para a mulher grávida

Do ponto de vista médico, é aconselhável o aborto quando se verifica que o produto de concepção coloca em risco a vida mãe. Mas, avançou que existem determinadas mulheres que não podem engravidar, por padecer de doenças do coração, as consideradas cardiopatas.

Explicou que existem determinados graus de cardiopatia, embora alguns casos mais leves que a pessoa pode engravidar e com um melhor acompanhamento podem dar à luz.

Por outro lado, João Simão avançou que existem determinadas doenças do coração e do sistema circulatório, como a Síndrome de Marfan (dilatação que corta uma das principais artérias e, por sinal, a mais potente do corpo humano) que levam os especialistas a desaconselhar uma gravidez em pessoas com esses problemas.

"Quando se verifica essa dilatação em determinados pontos deste vaso, não é aconselhável que a mulher engravide e leve a gestação até ao final”, realçou.

Hipertensão na gestante

O médico realçou que uma das grandes patologias associada à interrupção da gravidez é a hipertensão arterial, que pode originar a pré-eclâmpsia.

"Nesse caso, se a mulher aparecer grávida, a partir de 20 semanas e apresentar cifras tensionais elevadas e em 48 horas não for controlada, a solução é a interrupção da gravidez" alertou o médico.

O especialista salientou que o prognóstico materno e fetal é muito desfavorável, o que pode vir a resultar em complicações como um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico ou isquémico, com consequências para uma insuficiência renal aguda e evoluir para crónica, o que acarreta a paciente a hemodiálise.

O médico explicou que há, igualmente, situações fetais, em que a paciente é submetida a uma ecografia morfológica e detecta-se que o produto de concepção apresenta múltiplos defeitos congénitos.

"Existem fetos que se produzem sem cérebro, que consideramos de anencefalia. Nessas situações, por mais que a gravidez seja levada até ao final, ao nascer, esses bebés são incompatíveis com a vida, por isso, chamam-se fetos inviáveis”, explicou.

Consequências do acto

O gineco-obstetrícia referiu que existem vários factores que levam as jovens e adolescentes à prática do aborto, entre os quais, destacou a condições social, económica, pressão familiar e o comprometimento com vida académica.

Porém, João Simão alertou que esse procedimento deve ser feito em locais apropriados e por pessoal treinado, para evitar várias consequências como a mutilação do órgão ou riscos de perfuração do útero, situação que obrigaria a retirada completa desse órgão.

Outras complicações que advêm do aborto feito em locais clandestinos têm a ver com problemas de hemorragia. E, quando não acorrem ao hospital com urgência, as mulheres podem perder a vida. "Muitas ficam com infecções criadas pelos microrganismos da vagina para o útero, por não tomarem antibióticos após o aborto”, explicou, para avançar que, quando não tratadas, essas infecções locais se generalizam e as bactérias invadem toda a corrente circulatória.

Jovens e adolescentes são as que mais abortam

Embora não tenha estatísticas oficiais, João Simão avançou que a experiência faz afirmar que são mais as jovens e adolescentes a praticar o aborto, embora as adultas não estão isentas.

"Temos casos de casais que procuram algum sítio para o aborto, porque, às vezes, o intervalo inter-genético entre um e outro filho é muito precoce”, disse, para acrescentar que há aqueles casos de pessoas casadas que abortam para disputar uma vaga de emprego.

Quanto aos preços cobrados para uma intervenção de interrupção de uma gestação, o médico disse que as pacientes dizem que as unidades particulares/clandestinas cobram entre 20 e 100 mil kwanzas, em função da idade gestacional e da pessoa que vai realizar.

Médico é pela descriminalização

Para João Simão, a criminalização do aborto tem um impacto negativo na vida da mulher, por se tratar de um desrespeito à autonomia e uma violação aos seus direitos.

"Estamos a preservar o ideal e a banalizar o real. O real é a mulher que já existe e cresceu decidir que deve salvaguardar a sua vida, enquanto o ideal é, ainda, um abstrato, um produto de concepção que não se sabe como vai evoluir e que pode ou não defeitos congénitos”, realçou.

O médico disse que a criminalização do aborto influencia a desigualdade social, afectando, principalmente, os com menos condições financeiras de se deslocar para um país onde o aborto é legal.

"Essas pessoas, não podendo ir ao hospital para abortar, sentem-se incapacitadas de aguentar uma gravidez até ao final e, claro, vão à procura de outros meios e canais, como comprar medicamentos nos mercados informais ou ir atrás de pessoas curiosas”, lamentou.

Vantagens da não criminalização

Para o gineco-obstetra, a descriminalização do aborto traria consigo muitos benefícios às mulheres. "Era fundamental que a gestante informasse os motivos para a prática do aborto, dado que contribuiria na decisão do técnico de Saúde”.

Por isso, João Simão acrescentou que a paciente usufruiria de área específica para ser feito o aborto, e o assunto tratado por profissionais competentes e especializados.

"Talvez não teríamos consequências vastas, que poderiam comprometer a vida da mulher, quando o aborto é feito de forma segura”, salientou João Simão, para quem a educação sexual é outro tema que deve ser discutido nas escolas e nas famílias.

Igreja é contra e condena o aborto

O porta-voz da Arquidiocese de Luanda, padre Adelino Calonda, afirmou que a doutrina oficial da Igreja sobre a moralidade do aborto é clara e taxativa que se apresenta como definitiva.

"A vida humana é inviolável, e ela não é só considerada de vida a partir do momento em que a criança vê a luz do sol ou faz seu primeiro choro, mas desde a concepção”, esclareceu.

O sacerdote realçou que a vida é um dom de Deus e deve ser vista como um princípio absoluto, imutável e intangível, que começa desde o embrião.

Adelino Calonda avançou que a existência de um ser humano, sujeito de direitos, desde o primeiro momento da concepção, é o pressuposto para se considerar a interrupção de uma gravidez como um acto de homicídio ou de assassinato em qualquer uma das condições.

O padre da Igreja Católica acrescentou que a sacralidade da vida humana e a condição de pessoa do embrião fundam a condenação incondicional do aborto, integrados nos argumentos de ordem divina.

"Não há nenhum caso específico em que nós somos a favor do aborto”, esclareceu, para avançar que, mesmo em casos difíceis ou que exijam maior cuidado, a igreja entende que nenhuma vida vale mais que outra, por terem todas valores absolutos.

O pastor Ribeiro Kanjaia, da Igreja Pentecostal Internacional Sabedoria de Deus, afirmou que os cristãos não concordam com as teorias ou leis que defendem o aborto. Embora compreenda existirem situações em que o aborto ocorre de forma espontânea e aquelas em que haja necessidade de se salvar a vida da mãe, o pastor disse que, para "a igreja, o aborto nunca foi um acto aceite”.

Lei angolana criminaliza

Nos termos do artigo 154 do Código Penal Angolano, segundo o jurista António Binga, a interrupção de gravidez é crime e a pena vai de dois a oito anos de prisão.

O jurista esclareceu que a lei penaliza, igualmente, os que ajudam a interromper a gravidez com e sem o consentimento da gestante, bem como aqueles que, por negligência, acabam interrompendo a gestação.

Para o técnico de Saúde, a pena de prisão, nos termos previstos n.º 2 do artigo 154, é de um a cinco anos, enquanto a mulher que fez aborto é punida com a pena de até cinco anos.

Nos termos do artigo 156 do Código Penal, explicou que o legislador determina extinção da responsabilidade e atenuação da pena, pelo facto de existir aqueles casos descritos que no referido ponto diminuem a pena ou gastam a responsabilização.

"O bem vida é tutelado pelos tratados internacionais e através da criminalização do aborto, o legislador procura proteger a vida”, informou, tendo acrescentado que o artigo 30 da Constituição da República de Angola esclarece os dados avançados.

As excepções da lei

Mas, referiu que, nos termos previstos do n. º1 do artigo 156 do Código Penal Angolano, não há responsabilidade criminal quando a interrupção da gravidez é realizada a pedido ou com consentimento da mulher grávida, baseando-se em certos factores, entre o de constituir o único meio de remover o perigo de morte ou de lesão grave e irreversível para a integridade física ou psíquica da mulher.

O outro factor tem a ver com uma gravidez resultante de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e se a interrupção for feita nas primeiras 16 semanas de gestação.

O jurista António Binga considerou-se um defensor da vida, por ser uma dádiva de Deus. "Sou a favor da criminalização do aborto, mas deixando em aberto algumas excepções”, disse.

Acrescentou que, quando a gravidez coloca a vida da mãe e do bebé em risco, o aborto é a melhor solução. Para o jurista, não basta criminalizar o aborto, mas é necessário fiscalizar para que se acabem com os procedimentos à margem da lei.

Prática é um desvio social

O sociólogo José Ventura considerou o aborto como um acto condenável socialmente, embora com alguma relatividade, uma vez que é mais praticado do que combatido.

"É em maternidades públicas onde nos deparamos com casos de abortos clandestinos, praticados por profissionais em troca de dinheiro”, denunciou o sociólogo.

José Ventura foi mais longe ao afirmar que "os principais agentes promotores de aborto na sociedade são os profissionais de Saúde”.

Sobre a naturalização do aborto, o sociólogo realçou que, analisando o quotidiano das pessoas, nota-se que há situações que tendem a normalizar a questão do aborto, há algum tempo.

Para o especialista, nessa realidade existe explicitamente uma ideia de condenação pública, mas, nos meandros, as coisas acontecem com certa naturalidade, sem dó e remorso.

Sobre as posições do Estado e religião, o estudioso social realçou que a igreja condena o aborto com base a argumentos de uma perspectiva sagrada que preserva a vida, enquanto o Estado age em defesa da vida com um olhar mais protector, ao contrário da religião.

Para José Ventura, trata-se do caso da eutanásia, em que existe da parte da Estado são igualmente antagónicas. "É uma questão de diálogo, embora que, para a Igreja Católica, neste aspecto não existe compreensão nenhuma quando se quer preservar a vida”.

Fonte: Jornal de Angola

Enviar um comentário

Please Select Embedded Mode To Show The Comment System.*

Postagem Anterior Próxima Postagem