“O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele”


Num enredo que gira em torno de Kassinda António Wenda Sekele, filho de NSoqui Nunda e de Sekele Wenda, nascido em M’Banza Kongo, que viu os seus pais a morrerem por terem accionado uma mina antitanque em 1992 quando, numa atribulada viagem para Luanda, sua mãe resolveu ir fazer xixi, e seu pai acompanhou-a a um mato de arbustos e mafumeiras nas redondezas da ponte de Kifangondo, já próximo de Luanda.

Porque a vida não deve parar perante todas as adversidades, Kassinda viveu 93 anos, vindo a falecer em 2072, com uma trajectória de vida carregada de harmonia e coerência, fazendo dele um homem de sucesso, quiçá, graças ao seu melhor amigo e conselheiro, o Mais Velho Shafeka.

Um romance cuja narrativa é desenvolvida em retrospectiva, partindo do presente para o futuro, abrangendo duas grandes épocas, 2150 até 2070 e de 2070 até 1992, em "O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele”, um livro editado pela Colecção Sete Egos da União dos Escritores Angolanos em 2020,  F.Tchikondo dá-nos a ler e compreender que o tempo e o traço abrem vestígios do futuro despoletando aviso à navegação a caminho do renascimento da personalidade humana. Pelo seu enredo e dimensão sociológica, histórica, antropológica até mesmo em termos do debate entre o direito positivo e o consuetudinário, a sua perspectiva de ficção científica em que o autor se antecipa 150 anos para o futuro desafiando a indústria quântica, é um afinado labor oficinal da escrita.

A complexidade envolvida nesse segmento inicial da obra aponta-nos um acto em que suas afecções seriam determinadas em sensações consequentes das percepções do personagem. Esse afecto surge na estética e na comparação, seus sentidos presenciam o fenómeno e confrontam com o que é inerente ao herói. Essas sensações também se estendem ao leitor. Poderíamos nesse ponto de vista estabelecer alguns questionamentos intrínsecos à localização espacial. Como a percepção estabelecida pelo narrador é consequente de sua analogia às observações de corpos celestes a partir da terra, poderíamos utilizar o imaginário para transcender essa limitação visual, ou seja, a leitura proporcionaria ao estudante uma imersão nesse meio cósmico delineada pela narrativa.

F. Tchikondo é o pseudónimo de Francisco Queiroz, natural do Kuito, Província Bié, centro geodésico de Angola. Licenciado em Direito pela Universidade Agostinho Neto, pós-graduado em Direito Económico Internacional pela Universidade Agostinho Neto e pela Universidade de São Paulo, Brasil, é advogado de profissão e docente universitário desde 1985, na Universidade Agostinho Neto desde 1985. No seu romance,  F. Tchikondo, actua como um verdadeiro Kataleko, termo em Umbundu, sua língua materna, que significa vai lá ver, vai lá espreitar, vai lá pesquisar, vai lá ter uma ideia, vai lá fazer um reconhecimento, enfim, como quem diz vai lá ver e ouvir, para em seguida nos reportar, e a partir dessa perspectiva de reconhecimento e, perante todas as adversidades de percurso que o exercício de estarmos vivos nos remete, reelaborarmos o rumo a seguir.

Pertencendo ao género narrativo da literatura, pois apresenta uma sequência de factos interligados que ocorrem ao longo de certo tempo, sendo a marca principal desse tipo de texto a relação temporal que se estabelece entre os factos, o Romantismo é o nome que se dá ao movimento literário que começou no final do século XVIII e vigorou até a metade do século XIX. Dele, pode-se derivar vários tipos de romance. Mas, partindo do pressuposto do romance de ficção científica que aqui preside, podemos dizer que este tipo de romance, pode ser um meio para a construção de um espaço dialógico, propiciando ao leitor a expressão de seu pensamento crítico, acto que F. Tchikondo faz bem, com um labor de escrita que se sente, se vive e, partilha com o leitor os desafios de vários campos do Direito, onde, o de Família, por exemplo, faz-se vincar já que as palavras e a linguagem jurídica têm a sua própria força simbólica e são passíveis de interpretação, por possuirem uma forma característica de raciocínio.

Carregado de hipóteses de orientação e sabedoria para o exercício profissional ou métodos legais de punição, de prisão, (re)educação, de encanto e veneno, de enfatuação e ilusão, de incredulidade, enfim, o romance  "O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele” é um espaço de diálogo entre um texto jurídico dentro do texto literário, em que ambos os textos auxiliam-se no conhecimento profissional; um entrando em contacto com determinadas experiências do mundo inalienável da cultura; e outro, compreendendo-se a si mesmo, fora do dogmatismo positivista do mundo que lhe é característico, busca no outro homem o ser das coisas e o sentido da manifestação espiritual como força mátria da existência humana.

De acordo com o prefaciador da obra, Boaventura Cardoso, uma voz sénior e de reconhecidíssima idoneidade no labor da escrita no contexto da literatura angolana e não só, "Toni (Sekele III), nascido em 2093, bisneto de Kassinda António Wenda Sekele, fundador da maior empresa de turismo de África e uma das maiores do mundo, toma a iniciativa de mandar pesquisar sobre o passado imperial do seu antepassado”, e o  Professor Kwenda Nzoji, ao ser indicado para elaborar o plano de pesquisa histórica,  encontra um arquivo digital de dados, relatos e descrições biográficos feitos por Hill, a namorada secreta de Sekele I, o fundador do império. Perante tal arquivo digital de dados, a equipa Kwenda depara-se com o desafio de descodificar  o volume de informação gravada em pen drives para o sistema quântico mas, perante a complexidade e sigilo que a árdua tarefa impõe, há a necessidade de se socorrer a Hill, namorada secreta de Kassinda António Wenda Sekele, o fundador do Império.

Num contexto de extremas divergências com vários modelos de vida que o mundo tem conhecido, F. Tchikondo traz para o seu romance aquilo que ele mesmo descreve como "ambiente de águas turvas” (mistura de estruturas e mentalidades ao mesmo tempo coloniais, socialistas, e capitalistas de pendor intervencionistas), a que o Império Kassitur consegue sobreviver graças aos conselhos de Mais Velho Shafeka. Passando por várias peripécias, como se equilibrar  entre a lei e a ética para se ser rico e honesto; o nacionalismo económico, a indústria turística e o crescimento da Kassitur; a juventude atribulada (menino de rua, candongueiro, agente informal de viagens, etc.) de Kassinda; os esquemas fraudulentos em que ele se viu envolvido; o "cabritismo”, etc.

Como se pode perceber, o autor fornece uma leitura sobre a importância das humanidades na ficção científica e adoptando essa postura entendemos que a ficção científica pode estabelecer um diálogo entre os aspectos filosóficos e sociológicos que tangem as várias dimensões das ciência. Percebe-se claramente que a ciência cria hipóteses ou leis, procurando imediatamente possibilitar condições para confirmação ou contestação dessas. Embora revelando-se como um escritor de segunda viagem, já que o romance  "O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele” antecede a sua primeira obra literária, "O semeador de Pedrinhas e outros contos”, também editada pela coleção Sete Egos da União dos Escritores Angolanos, em 2016, a escrita de F. Tchikondo delicia, provoca e espicaça, respondendo às ansiedades do próprio exercício de estarmos vivos.

Como em toda sua obra a produção literária em ficção científica se destaca, F. Tchikondo fundamenta sua narrativa a partir de diversos temas científicos. No caso da aprendizagem baseada na edução intergeracional, essa obra privilegia temas relativos ao assentamento costumeiro, às diversas formas de movimentos e às interações de forças. Apesar da predominância do diálogo, podemos encontrar outros assuntos – industria quântica, óptica e ondulatória - que fundamentam as situações vividas pelos personagens. Sendo a literatura um factcor indispensável na "humanização do homem”, ela reflecte as aspirações das "crenças, sentimentos, impulsos e normas” de uma sociedade, enquanto um importante elemento de instrução e educação, é por esta razão que ela potencializa a formação cultural e crítica do leitor e, instado ao seu consumo, muitas vezes o leitor  identifica-se na personagem, construindo o que António Cândido (2005, p. 55) chama de "sentimento de verdade e verossimilhança” refletindo sobre a realidade que o afecta. Esse "poder humanizador” possibilita que a estrutura da obra literária transcenda o "caráter de coisa organizada” e torne-se um factor que deixa o leitor mais capaz de "ordenar a própria mente e sentimentos” e consequentemente, mais capaz de "organizar a visão de mundo.

Caracterizar um género literário, está relacionado com o grau de abstracção que assumimos em relação ao texto, podendo assumir-se que essa caracterização depende da subjectividade e histórico de leitura do leitor.  Assim, a ficção científica promove no leitor a suspensão da incredibilidade, que resulta na aceitação da perspectiva do autor pelo leitor, permitindo que o escritor construa um sentido de verossimilhança, tornando-a real e verdadeira. Para isso a ficção científica possui a característica de extrapolar a ciência em algumas obras ou a de construir uma ciência imaginária em outras obras, isso torna a ciência da ficção científica diferente da ciência em simpósios.

Socorrendo-me da minha modesta experiência de docente universitário, apraz-me dizer que o professor que se coloca como mediador no processo de ensino, numa perspectiva dialéctica, percebe que a constituição do sujeito se dá nas relações entre os sujeitos, pois já temos nossa subjectividade, fruto das relações. Assim, o aluno não é mais visto como alguém que está "vazio” e precisa ser "preenchido” por conhecimentos. O senso comum do aluno é o ponto de partida para a aprendizagem e o professor deve convidá-lo a buscar o conhecimento científico, de modo que o aluno perceba a dinâmica da Ciência como um processo em permanente construção e desenvolvimento, não se limitando a estudar apenas os resultados.  

Fazendo uma leitura aprofundada, a ficção possui essencialidades do género literário que podem ser caracterizadas de extremo aprofundamento científico, no caso do presente romance, as questões que poderiam organizar a narrativa, estariam expressas no tempo passado, suscitando questionamento sobre esses eventos e propondo o interesse do leitor em acompanhar a obra. No caso dos contos, a acção permearia o tempo futuro, que focaria a leitura em suscitações sobre os eventos que acontecerão. O romance integraria esses dois elementos da novela e do conto.

Essa premissa conduz-nos ao mesmo entendimento da relação entre escritor e leitor, acreditando desse modo que a formação de um espaço de leitura em que o escritor, por via da sua obra torna-se mediador dessa leitura, possibilita ao leitor a reflexão e o debate na investigação de um dado elemento na obra, instando permanentemente o enredo que a obra nos apresenta, enriquecendo o processo de diálogo autor-leitor, por via da leitura, aprimorando  a sua visão crítica e sua reflexão até conceitual.

Mas então, como se preparar para o futuro?

Muitas das habilidades levantadas estão ligadas às habilidades interpessoais, ou seja, inteligência social para estabelecer relações de colaboração. Por isso, a capacidade de comunicar-se bem, tanto oralmente quanto na escrita é essencial. Estar pronto para o futuro não significa somente adquirir conhecimento técnico, mas desenvolver habilidades que podem ser aplicadas a qualquer trabalho. Habilidades estas inerentes aos humanos, pois são elas que nos diferenciarão das máquinas. O que nos diferenciará no futuro são nossas habilidades humanas. E, dentre essas habilidades, está o relacionamento com o outro, principalmente em um mundo cada vez mais exigente e mais polarizado. Não importa o objectivo: gerenciar pessoas, criar produtos e serviços para elas, ter melhores relacionamentos ou causar impacto social, o facto é que precisamos entender verdadeiramente o outro e criar conexões. É aqui que entra a empatia. 

A ficção científica e a filosofia da diferença

Depois de ter sido lançado em Dezembro de 2020, em Luanda, e de uma outra cerimónia de apresentação do livro para as empresas e o corpo diplomático acreditado no país, realizado em 2022, o romance  "O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele”, segunda obra do autor a ser editada na Colecção Sete Egos da União dos Escritores Angolanos, enquadrando-se nas comemorações do 4 de Abril, Dia da Paz e da Reconciliação Nacional, foi apresentado em Kigali, Ruanda, numa versão em Inglês. A internacionalização do romance "O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele” vai de vento em popa, cumprindo uma agenda cada vez mais alargada, pois para breve, a Nigéria, Portugal e o Brasil serão os próximos destinos em que o romance se fará ouvir, despertando afectos, sentimentos e sensações de vários quadrantes.

De acordo com os filósofos franceses do pós-estruturalismo, os afectos são forças que "modulam as sensações”, forma alheia aos sentimentos (Rodrigues, 2007, p. 162) e os perceptos, no caso de um romance, seriam o cenário em que ocorrem as percepções do personagem (Deleuze e Guatari, 1997, p. 219). Assim, compreendendo a ficção científica como uma obra de arte, ela deve gerar esses afectos e perceptos como a filosofia da diferença nos propõe. Portanto, os conceitos inerentes à  edificação de saberes são possibilitados pelo papel crítico e humanizador da literatura. Norteados pela leitura, favorecem a construção de um espaço para o exercício do que Paulo Freire denomina de "curiosidade epistemológica”, que possibilita ao leitor utilizar a capacidade crítica para "se aproximar, observar e cercar” o enredo e dessa forma fazer comparações que lhe permitam o questionamento e a pergunta (FREIRE, 1995, p. 85).

Perante tudo nos perguntamos. Quem é F. Tchikondo como escritor? 

É escritor inspirado ou escritor artesão? De um discurso que se caracteriza pela utilização de uma linguagem onde se exacerba um enredo fluentemente aberto ao mundo, na intenção de se construir um objecto (a obra de arte literária, o romance) que tenha existência material independente e que ultrapasse a mera comunicação pela língua corrente. Quem é esse escritor? É um escritor inspirado ou escritor artesão?

Em jeito de resposta, responderemos que segundo os teóricos da literatura, um escritor inspirado, é aquele cuja descendência vem do romantismo. É o escritor que se senta à janela a observar a lua, ou caminha solitário entre as árvores a ouvir os rumores da natureza, aquele que se encanta com a paisagem interior e exterior numa comunhão mais ou menos absoluta e estática, para sentir-se inspirado e partir para o labor de escrita. É aquele que diz que ouve vozes. Portanto tem uma relação de escrita mais ou menos transcendental. Em sua obra está expresso o enredo decantado, com formas completamente harmónicas, em que o romance se lê como uma peça completa, de escultura em que nada falta e nada está a mais.

Assim, um escritor inspirado não se torna um inspirado apenas porque o seu estado de alma está inspirado, mas porque está inserido num contexto em que prezar-se como tal tem um significado social em articulação com outros significados, dos quais ele compartilha. Essa simples observação coloca em relevo o contexto cultural, ou, dito de outra forma, a relevância da contextualização das práticas observadas de um romance, no caso concreto, pois para entender uma linguagem que nos vem dos mais profundos e diversificados zumbidos, é preciso desvendar-se da mera lógica simbólica, a lógica que orienta as práticas dos actos invisíveis dentro de um campo específico, incluindo os conceitos com os quais estamos lidando.E voltamos a perguntar. Será que F. Tchikondo também é escritor artesão?

Aqui a nossa resposta também é sim, pois em "O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele” ambos os escritores se confundem, embora, o artesanato é aqui concebido como um fenómeno heterogéneo, complexo e diversificado. Como uma forma de expressão cultural entre a tradição e a contemporaneidade, o trabalho artesanal no mundo contemporâneo está envolto em diversas dimensões. A noção de escritor artesão, presente já no Trovadorismo e, de forma bastante clara, também na grande era clássica da literatura (Renascimento, Maneirismo, Barroco e Arcadismo) não é privilégio da modernidade, mas delineia-se de forma mais contundente a partir da segunda metade do séc. XIX.

De acordo com essa perspectiva teórica do fio condutor que estou a tentar explorar, o escritor artesão é o escritor moderno por excelência, aquele, enfim, que se desloca no tempo e vai espreitar o futuro. É aquele que constrói o seu romance um pouco como o operário que faz da linguagem a sua matéria oficinal. Desmonta, burila, corta, recompõe, desarticula as próprias palavras para criar possibilidades de novos sentidos, experimenta novas palavras, novas formas, escreve cinco, oito ou dez versões sobre a mesma sensação: é o escritor que carpinteia na linguagem e tem com a sua escrita uma relação de profunda consciência.Sim, esse é o F. Tchikondo. Um estratega, tal como há estrategas militares, ele é um estratega da linguagem, sabe o que faz, pois segura o leme e direcciona o barco ao bom porto. Ele sabe para que direcção segue e, não se rendendo à configuração simplicista no seu labor de escrita, explora ao máximo a virtude e o talento, exorcizando a concisão e orientando-se à exploração do seu enredo ao mínimo detalhe.

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